quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Escrever em bom português



Quando entregava um livro aos editores, Monteiro Lobato costumava colocar, antes do texto, um recado aos revisores: avisava quais eram os sinais utilizados na língua portuguesa. E os mandava colocar no texto, aonde quisessem.

Escrever não é saber pontuação, nem mesmo saber português. Escrever é imprimir ideias. Elas se propagam de muitas maneiras, mas a mais elegante, eficaz e perene é escrevendo. Seja em papel ou no mundo virtual.

Eu uso isso como desculpa para todos os erros que cometo, num atentado não deliberado, mas não muito arrependido, ao bom português. Troco onde por aonde e vice-versa. Esqueço o "em" antes do "que". E por aí vai. Conheço as regras, mas no fluxo do pensamento muitas vezes elas vão ficando para trás.

Talvez alguns estranhem a comparação, ou a achem de mau gosto, mas escrever é como fazer amor. Se você ficar pensando na parte mecânica do ato, como um engenheiro, e não um amante, a coisa não sai.

Escrever, fazer amor e dançar têm isso em comum. Fred Astaire certamente nunca pronunciou as palavras "dois pra cá, dois pra lá".

Se a ortografia não é minha arte, prezo ainda menos pela datilografia. Escrever não é datilografar. Cato milho com dois dedos de cada mão há mais de trinta anos trabalhando em jornalismo. Por vezes o texto sai tão difícil de ler quanto o manuscrito, onde também como letras, ou sílabas inteiras, numa garatuja muitas vezes próxima da estenografia.

Sei que é irritante para os outros, deselegante, talvez, e uma complicação. O ideal é entregar o serviço perfeito, limpo, profissional. Porém, o cuidado com a língua é mais próprio do revisor, do professor ou do acadêmico. E uma coisa é certa: quando o dançarino é talentoso, o amante é bom e as ideias fazem efeitos, as regras ficam sempre em segundo lugar.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

"Não tenha pressa, mas não perca tempo"



O jornalista José Ruy Gandra, que certa vez entrevistou o escritor português José Saramago, foi quem ouviu primeiro a frase lapidar, seu conselho para jovens escritores: "Não tenha pressa, mas não perca tempo".

Fiquei com a frase, pérola de sabedoria que serve para tudo, porém é especialmente importante para a tarefa de escrever. Há dentro dela mais do que simples filosofia: há um mecanismo de trabalho que define o próprio ato de escrever.

Escrever é pensar no papel. É preciso, para que um texto saia perfeito, haver uma sincronia entre ambas as coisas; certamente Saramago sabia disso como ninguém. Por vezes, se estamos ansiosos com o que vamos escrever, ou pensamos rápido demais, mais rápido do que podemos escrever, pulamos algo importante. Se as ideias não fluem, o texto não sai. Escrever tem, como se diria em inglês, o seu pace - o seu tempo, uma espécie de cadência, em que pensamento e escrita fluem juntos.

Esse fluxo em que se escreve pensando e vice-versa só é adquirido com a prática da escrita. Por isso, não basta o talento. Somente a prática faz com que o texto saia na tela do computador com naturalidade, da mesma forma com que as palavras saem da boca quando falamos. O discurso oral parece ser produzido sem pensar; na realidade, pensamos enquanto falamos. O mesmo ocorre com a linguagem escrita, com a diferença de que falamos desde pequenos, todos os dias, durante anos. Escrever com a mesma naturalidade com que se fala requer treinamento igual.

A pressa faz as palavras seguirem à frente das ideias, o que é contraproducente; escrever devagar faz o processo igualmente parar. Escrever requer paciência e o cumprimento de todas as etapas, frase a frase, parágrafo por parágrafo.

Claro que a sentença de Saramago se refere a mais coisas, ou principalmente a outra coisa. É muito fácil nos distrairmos diante da tarefa de escrever.É um trabalho pessoal, que não pode ser terceirizado. E que sempre requer a volta a uma certa sintonia quando temos que recomeçar depois de uma parada. Tendemos a querer fazer outras coisas, a fugir do trabalho, por receio de não conseguir realizar a mágica novamente, nunca mais. Por isso é importante não ter pressa, para fazer o serviço direito, mas não perder tempo. O tempo é a única coisa que temos.

Depois de escrever um livro de não-ficção, que deve sair pela editora Planeta em fevereiro próximo, estou pelo meio de um ambicioso romance, desafio diário que me dá tanto prazer quanto medo. Os anos de trabalho não eliminaram de todo a incerteza; por vezes, receio que uma coisa ou outra não fique tão boa; por vezes, resisto a recomeçar. Tento aproveitar os momentos de envolvimento com a história, que fazem o trabalho render mais. E sento diariamente diante da máquina, logo ao acordar, para que nada sirva de distração.

Penso em Saramago e João Ubaldo, que recentemente perderam a coisa mais importante para o escritor - o tempo. Eles me ajudam a ir adiante, sem perder tempo, nem o compasso.

Bons pensamentos para dividir também nocurso Escreva Bem, Pense Melhor, dia 7 próximo na Livraria da Vila.